Você
sabia que certas decisões judiciais podem ser anuladas mesmo
depois de transitadas em julgado? Essa é a premissa central
da querela nullitatis insanabilis, ação destinada a
impugnar sentenças contaminadas por vícios tão graves – os
chamados vícios transrescisórios – que as tornam
juridicamente inexistentes.
Com base
em jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça
(STJ), este artigo explica quando e como utilizar a querela
nullitatis para anular sentenças eivadas de nulidades
insanáveis, sem depender da tradicional e limitada ação
rescisória.
O que é Querela Nullitatis
Insanabilis?
A querela nullitatis
insanabilis – ou ação declaratória de inexistência da
sentença – é um instrumento excepcional de impugnação de
decisões judiciais proferidas em processos marcados por
vícios gravíssimos, como a ausência de citação
válida. Esses vícios são chamados de transrescisórios,
pois nem mesmo após o prazo de 2 anos da ação rescisória
o vício é afetado pela coisa julgada.
Conforme
reconhecido pelo STJ, a sentença proferida sem citação válida –
pressuposto essencial de existência do processo – é juridicamente
inexistente. Ela simplesmente não existe no mundo jurídico,
o que justifica a sua impugnação a qualquer tempo,
mesmo após o trânsito em julgado e depois de transcorrido o prazo
da ação rescisória (2 anos do trânsito em julgado).
Quais
são os Vícios Transrescisórios?
Os principais
exemplos de vícios transrescisórios incluem:
–
ausência de pressuposto processual de existência do processo;
–
falta ou nulidade de citação do réu;
– sentença
extra petita.
Esses vícios são imprescritíveis,
pois violam diretamente os pilares do processo válido: contraditório,
ampla defesa e devido processo legal.
A
jurisprudência tem reiterado que vícios como ausência de citação
ou sentença extra petita não apenas violam o devido processo legal,
mas são passíveis de reconhecimento ex officio,
conforme já decidiu o STJ no AgInt no REsp
2.025.585/PR.
Jurisprudência do STJ: Não é
necessária ação autônoma
Em importante
precedente (REsp 2.025.585/PR e REsp 1.930.225/SP), o STJ consolidou
o entendimento de que a pretensão da querela nullitatis pode
ser deduzida por qualquer meio processual adequado, inclusive:
–
Ação declaratória genérica:
– Impugnação ao cumprimento de
sentença;
– Exceção de pré-executividade;
– Simples
petição;
– Mandado de segurança;
– Ação civil
pública.
Não é necessário ajuizar ação
autônoma específica para discutir a nulidade insanável. A corte
adotou a instrumentalidade das formas e a fungibilidade processual
como fundamentos para afastar o formalismo excessivo.
Princípios
Aplicados: Celeridade, Economia e Efetividade
O
STJ tem reiterado que a querela nullitatis não é um
procedimento, mas uma pretensão que pode ser veiculada por
diversos meios. O objetivo é garantir:
– Efetividade
da tutela jurisdicional
– Celeridade processual
– Economia
de atos
– Prevalência da verdade real sobre a forma
Esse
entendimento permite que a parte prejudicada por uma sentença nula
não seja privada de justiça apenas por ter escolhido a “via
processual errada”.
Exemplos Práticos
Admitidos pelo STJ
– Reconhecimento da
nulidade via petição simples (AgInt no REsp
2.025.585/PR);
– Impugnação em cumprimento de
sentença (REsp 1.930.225/SP);
– Mandado de
segurança para impedir reintegração de posse (RMS
14359/MG);
– Ação civil pública para declarar nulidade por
ausência de citação (REsp 1015133/MT);
–
Conversão de ação rescisória fora do prazo em ação de
nulidade (REsp 1993898/BA)
Doutrina
Reforça a Flexibilização
Autores renomados
como Daniel Amorim Assumpção Neves, Teresa Arruda Alvim,
Cândido Rangel Dinamarco e Adroaldo Furtado Fabrício sustentam
que a querela nullitatis é instrumento legítimo e
necessário para o controle da legalidade e da justiça
processual.
Eles defendem a possibilidade
de pluralidade de meios para impugnar nulidades
insanáveis, desde que respeitados os direitos fundamentais
e o contraditório.
Conclusão: A Querela
Nullitatis é um poderoso mecanismo de justiça
A
querela nullitatis insanabilis não apenas resgata a ideia
de justiça material, como também corrige distorções
processuais gravíssimas. Se você ou seu cliente foi condenado
ou prejudicado por uma decisão sem citação válida, com ausência
de pressupostos processuais de existência, após o prazo para
propor ação rescisória, a sentença pode ser anulada a
qualquer tempo.
A querela nullitatis é o
remédio jurídico que separa o justo do apenas formal. Onde não
houve processo válido, não há coisa julgada. Há apenas uma
aparência de legalidade – que pode e deve ser desfeita.
Dr.
Héctor Luiz Borecki Carrillo, advogado, OAB-SP nº250.028.
Leia
os precedentes
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO
NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO RESCISÓRIA. OMISSÃO. NÃO
RECONHECIDA. QUERELA NULLITATIS. AUSENCIA DE CITAÇÃO.
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.
1. Ação rescisória.
2.
Esta Corte firmou o entendimento segundo o qual o defeito ou a
inexistência da citação opera-se no plano da existência da
sentença, caracterizando-se como vício transrescisório que pode
ser suscitado a qualquer tempo, mediante simples petição ou por
meio de ação declaratória de nulidade (“querela
nullitatis”). Precedentes.
3. Considerados os
princípios da celeridade e da economia processual, bem como a
instrumentalidade das formas, não se vislumbra prejuízo na
determinação do Tribunal de origem que, ao receber ação
rescisória, entendeu que a ação cabível é a declaratória de
nulidade, a qual não possui competência para apreciar e, por isso,
determinou a remessa dos autos ao Juízo de Primeiro grau para que os
receba como “querela nullitatis”.
4. Agravo
interno desprovido.
(AgInt no REsp n. 2.025.585/PR, relatora
Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 17/6/2024, DJe de
19/6/2024.)
“QUERELA NULLITATIS” – Ação
declaratória de inexistência de decisão judicial válida –
Adequação da via eleita – Defeito ou inexistência da citação
opera-se no plano da existência da sentença, caracterizando-se como
vício transrescisório que pode ser suscitado a qualquer tempo –
Citação por edital realizada nos termos do artigo 231 e 232 do
Código de Processo Civil de 1973, sem realização de diligências
devidas – Vício de citação caracterizado – Impossibilidade de
desmembramento da demanda em razão da condenação solidária da
ação originária – Apelação fazendária não provida – Apelação
da Eletropaulo Metropolitana Eletricidade de São Paulo S/A provida.
(TJSP; Apelação Cível 1029713-38.2023.8.26.0053; Relator (a):
Fermino Magnani Filho; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito
Público; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 7ª Vara de
Fazenda Pública; Data do Julgamento: 30/06/2025; Data de Registro:
02/07/2025)
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DECLARATÓRIA
DE NULIDADE DE QUERELA NULLITATIS INSANABILIS –
Pretensão de anulação de atos proferidos em ação de usucapião –
Sentença de procedência – Insurgência da ré – Não cabimento –
Ausência de citação dos herdeiros do co possuidor do imóvel em
ação de usucapião, cujo pedido fora julgado procedente – Citação
editalícia genérica que não supre o vício – Alegação de
desconhecimento dos outros herdeiros, quatro filhos e duas netas do
seu falecido companheiro, descaracterizada pelos elementos dos autos
– Nulidade da sentença proferida na ação de usucapião bem
reconhecida – Precedentes deste E. Tribunal – Sentença mantida –
RECURSO DESPROVIDO. (TJSP; Apelação Cível
1002368-18.2024.8.26.0553; Relator (a): Lucilia Alcione Prata; Órgão
Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santo Anastácio –
Vara Única; Data do Julgamento: 03/07/2025; Data de Registro:
03/07/2025)
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO
DECLARATÓRIA DE NULIDADE. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL NÃO
VERIFICADA. VIOLAÇÃO A DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL E A ENUNCIADO
SUMULAR. NÃO CABIMENTO DE RECURSO ESPECIAL. ESCRITURA PÚBLICA DE
CESSÃO DE DIREITOS POSSESSÓRIOS E BENFEITORIAS. SENTENÇA
DECLARATÓRIA DE USUCAPIÃO EM PROCESSO ANTERIOR. EVENTUAL
VÍCIO TRANSRESCISÓRIO. NULIDADE QUE NÃO REQUER AJUIZAMENTO DE AÇÃO
AUTÔNOMA E ESPECÍFICA. INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS. RECURSO
PROVIDO.
1. Ação declaratória de nulidade, da
qual se extrai o presente recurso especial, interposto em 9/2/2022 e
concluso ao Gabinete em 5/7/2024.
2. O propósito recursal
é decidir, além da ocorrência de negativa de prestação
jurisdicional, se, para fins de verificação do interesse de agir
como condição da ação, a pretensão da querela
nullitatis (para declaração de nulidade de decisão
transitada em julgado por vício transrescisório) deve ser requerida
em ação declaratória específica e autônoma ou se pode ser
formulada em demanda em que se apresenta como questão incidental ou
prejudicial para o exame de outros pedidos.
3.
Inexistência de ofensa ao art. 489 e ao art. 1.022 do CPC e de
negativa de prestação jurisdicional. 4. Não cabimento de recurso
especial por suposta violação de dispositivos constitucionais de
enunciado de sumular. Precedentes.
Súmula n. 518/STJ.
5.
Vício transrescisório representa nulidade que, dado seu elevado
grau de ofensividade ao sistema jurídico, não pode ser mantida
ainda que decorrente de decisão transitada em julgado e após
ultrapassado o prazo decadencial da ação rescisória.
6.
Quando verificado (como ocorre diante da falta de citação), o vício
transrescisório pode ser impugnado por meio da chamada querela
nullitatis insanabilis (reclamação de nulidade incurável) ou
apenas querela nullitatis.
7. A querela nullitatis, no
âmbito da jurisprudência do STJ, tem sido compreendida como
“pretensão” e não como “procedimento”. Assim,
tem recebido tratamento direcionado à promoção do princípio da
instrumentalidade das formas, de modo a garantir celeridade, economia
e efetividade processual.
8. Como consequência, o STJ
admite a invocação da nulidade de decisões transitadas em julgado
eivadas de vícios transrescisórios sem a necessidade de forma
específica ou de propositura de uma ação declaratória
autônoma.
9. A pretensão da querela nullitatis, assim, a
depender das circunstâncias de cada hipótese, pode estar inserida
em questão prejudicial ou principal da demanda, bem como pode ser
arguida através de diferentes meios processuais (como ações
declaratórias em geral, alegação incidental em peças defensivas,
cumprimento de sentença, ação civil pública e mandado de
segurança). Precedentes.
10. Hipótese em que, em trâmite
há mais de quinze anos, a demanda foi extinta, sem resolução do
mérito, por ausência de interesse processual, diante da inadequação
da via eleita, sob o fundamento de que a nulidade de sentença de
usucapião transitada em julgado, em processo anterior, apenas
poderia ser reconhecida por meio de ação autônoma.
11.
Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão,
provido.
(REsp n. 2.095.463/PR, relatora Ministra Nancy
Andrighi, Terceira Turma, julgado em 18/3/2025, DJEN de
21/3/2025.)
AÇÃO RESCISÓRIA. DECISÃO RESCINDENDA
PUBLICADA EM NOME DE ADVOGADO QUE NUNCA REPRESENTOU O AUTOR NOS AUTOS
DA AÇÃO ORIGINÁRIA. NULIDADE. DETERMINAÇÃO DE NOVA PUBLICAÇÃO
DA DECISÃO RESCINDENDA COM REABERTURA DO PRAZO DO RECURSO.
CONSEQUENTE INVIABILIDADE DE NOVO JULGAMENTO DA CAUSA, NO CASO.
PEDIDO PROCEDENTE EM PARTE. (AR n. 6.463/SP, relatora Ministra Maria
Isabel Gallotti, Segunda Seção, julgado em 12/4/2023, DJe de
5/5/2023.)
PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL.
REINTEGRAÇÃO DE POSSE. QUERELA NULLITATIS. AVENTADA AUSÊNCIA DE
EFETIVA CITAÇÃO DOS AUTORES. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC
CONFIGURADA.
1. A ação de querela nullitatis é remédio
vocacionado ao combate de sentença contaminada pelos vícios mais
graves dos erros de atividade (errores in procedendo), nominados de
vícios transrescisórios, que tornam a sentença inexistente, não
se sanando com o transcurso do tempo.
2. Os embargos de
declaração são cabíveis quando houver, na sentença ou no
acórdão, obscuridade, contradição, omissão ou erro material,
consoante dispõe o artigo 535, incisos I e II, do Código de
Processo Civil.
3. A violação ao art. 535 do Código de
Processo Civil configurou-se no caso dos autos, uma vez que, a
despeito da oposição de embargos de declaração – nos quais os
recorrentes apontam a existência de omissão, mormente no tocante à
falta de efetiva citação dos demandados no processo de reintegração
de posse -, o Tribunal não se manifestou de forma satisfatória
sobre o alegado, notadamente pelo fato de ter afirmado que essa
matéria já fora analisada em outros julgados, o que não
ocorreu.
4. O enfrentamento da questão ventilada nos
embargos de declaração é absolutamente insuperável e não pode
ser engendrado pela primeira vez nesta Corte, principalmente pelo
óbice da Súmula 7 do STJ.
5. Recurso especial
provido.
(REsp n. 1.201.666/TO, relator Ministro Luis Felipe
Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/6/2014, DJe de
4/8/2014.)
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. FAIXA
DE FRONTEIRA. BEM DA UNIÃO. ALIENAÇÃO DE TERRAS POR ESTADO NÃO
TITULAR DO DOMÍNIO. AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO. “TRÂNSITO EM
JULGADO”. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DECLARAÇÃO
DE NULIDADE DE ATO JUDICIAL. PRETENSÃO QUERELA
NULLITATIS. CABIMENTO. ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. RETORNO DOS
AUTOS À CORTE REGIONAL PARA EXAME DO MÉRITO DAS APELAÇÕES. 1. O
INCRA ajuizou ação de desapropriação por interesse social para
fins de reforma agrária contra Antônio Mascarenhas Junqueira e
outros, objetivando a aquisição da posse e do domínio do imóvel
denominado “Gleba Formosa”, com área de 14.000 ha
(quatorze mil hectares), situado no Município Mato Grossense de Vila
Bela da Santíssima Trindade. O processo transitou em julgado e, por
ordem judicial, o INCRA emitiu diversas TDAs para indenização da
terra nua e fez o pagamento de alguns precatórios, estando a dívida
quitada apenas em parte. Nesse ínterim, a autarquia expropriante
propôs a presente ação civil pública contra o Estado do Mato
Grosso e diversos particulares nominados na petição inicial para
evitar a ocorrência de dano grave ao patrimônio público federal,
com o objetivo de obter: (a) a declaração de nulidade de registros
imobiliários decorrentes de titulações feitas a non domino pelo
Estado réu sobre terras devolutas situadas na faixa de fronteira do
Brasil com a Bolívia, de plena titularidade federal desde a
Constituição de 1891 até os dias atuais; (b) o reconhecimento
judicial de que não é devida qualquer indenização decorrente de
ação expropriatória anteriormente ajuizada pelo INCRA contra os
particulares que figuram como réus nesta ação; e (c) a condenação
ao ressarcimento de todos os valores que tenham sido pagos
indevidamente com base no título judicial extraído da
desapropriação.
2. O Juízo de 1º Grau julgou
procedentes os pedidos formulados na ação. O TRF da 1ª Região
reformou a sentença por entender que “a ação civil pública
(…) não tem serventia para buscar a anulação de venda de terras
devolutas por Estado-membro, posteriormente desapropriadas e com
sentença passada em julgado, até mesmo porque não é sucedâneo
serôdio da ação rescisória não proposta no biênio
legal”(fl.1556).
3. A Sra. Ministra Eliana Calmon,
relatora do caso, negou provimento aos dois recursos especiais, por
entender que, “em respeito à coisa julgada e à segurança
jurídica, incabível a ação civil pública, que, pela via
transversa, busca declarar nulo o título de domínio, rescindir o
julgado na ação de desapropriação e condenar os particulares a
devolverem valores recebidos em cumprimento de uma ordem
judicial”.
4. Do regime jurídico da faixa de
fronteira e da natureza do vício decorrente de alienação por quem
não detém o domínio.
4.1. O domínio público sobre a
porção do território nacional localizada na zona de fronteira com
Estados estrangeiros sempre foi objeto de especial atenção
legislativa, sobretudo constitucional. As razões dessa preocupação
modificaram-se com o tempo, principalmente quando da sucessão do
regime imperial para o republicano, mas sempre estiveram focadas nos
imperativos de segurança nacional e de desenvolvimento
econômico.
4.2. A faixa de fronteira é bem de uso
especial da União pertencente a seu domínio indisponível, somente
autorizada a alienação em casos especiais desde que observados
diversos requisitos constitucionais e legais.
4.3. Compete
ao Conselho de Defesa Nacional, segundo o art. 91, § 1º, III, da
CF/88, propor os critérios e condições de utilização da faixa de
fronteira. Trata-se de competência firmada por norma constitucional,
dada a importância que a CF/88, bem como as anteriores a partir da
Carta de 1891, atribuiu a essa parcela do território nacional.
4.4.
Nos termos da Lei 6.634/79, recepcionada pela CF/88, a concessão ou
alienação de terras públicas situadas em faixa de fronteira
dependerá, sempre, de autorização prévia do Conselho de Segurança
Nacional, hoje Conselho de Defesa Nacional.
4.5. O ato de
assentimento prévio consiste em uma autorização preliminar
essencial para a prática de determinados atos, para o exercício de
certas atividades, para a ocupação e a utilização de terras ao
longo da faixa de fronteira, considerada fundamental para a defesa do
território nacional e posta sob regime jurídico excepcional, a teor
do disposto no § 2º do art. 20, da Constituição Federal. É por
meio do assentimento prévio que o Estado brasileiro busca
diagnosticar a forma de ocupação e exploração da faixa de
fronteira, a fim de que se possam desenvolver atividades estratégicas
específicas para o desenvolvimento do país, salvaguardando a
segurança nacional.
4.6. A faixa de fronteira não é
somente um bem imóvel da União, mas uma área de domínio sob
constante vigilância e alvo de políticas governamentais específicas
relacionadas, sobretudo, às questões de segurança pública e
soberania nacional.
4.7. A importância da área deve-se,
também, à relação estreita que mantém com diversas outras
questões igualmente relevantes para o Governo Federal, entre elas:
(a) questões indígenas, pois, segundo informações da Secretaria
de Patrimônio da União, 30% da faixa de fronteira é ocupada por
terras indígenas, já demarcadas ou não; (b) questões fundiárias
relacionadas à grilagem e conflito de terras;
(c)
questões sociais da mais alta relevância, como a invasão de terras
por movimentos sociais e a exploração de trabalhadores em regime de
semi-escravidão; (d) questões criminais referentes ao narcotráfico,
tráfico de armas, descaminho, crimes ambientais – como a exploração
ilegal de madeira e a venda ilícita de animeis silvestres –
assassinato de lideranças indígenas, de trabalhadores rurais, de
posseiros, de sindicalistas e até de missionários religiosos; (e)
questões de Direito Internacional relacionadas à necessidade de
integração regional com os países membros do Mercosul e das demais
organizações de que o Brasil seja parte.
4.8. Qualquer
alienação ou oneração de terras situadas na faixa de fronteira,
sem a observância dos requisitos legais e constitucionais, é “nula
de pleno direito”, como diz a Lei 6.634/79, especialmente se o
negócio imobiliário foi celebrado por entidades estaduais
destituídas de domínio.
4.9. A alienação pelo Estado a
particulares de terras supostamente situadas em faixa de fronteira
não gera, apenas, prejuízo de ordem material ao patrimônio público
da União, mas ofende, sobretudo, princípios maiores da Constituição
Federal, relacionados à defesa do território e à soberania
nacional.
4.10. O regime jurídico da faixa de fronteira
praticamente não sofreu alterações ao longo dos anos desde a
primeira Constituição Republicana de 1891, razão porque pouco
importa a data em que for realizada a alienação de terras, devendo
sempre ser observada a necessidade de proteção do território
nacional e da soberania do País.
5. Da nulidade absoluta
e da pretensão querela nullitatis insanabilis.
5.1. O
controle das nulidades processuais, em nosso sistema jurídico,
comporta dois momentos distintos: o primeiro, de natureza incidental,
é realizado no curso do processo, a requerimento das partes, ou de
ofício, a depender do grau de nulidade. O segundo é feito após o
trânsito em julgado, de modo excepcional, por meio de impugnações
autônomas. As pretensões possíveis, visando ao reconhecimento de
nulidades absolutas, são a ação querela nullitatis e a ação
rescisória, cabíveis conforme o grau de nulidade no processo
originário.
5.2. A nulidade absoluta insanável – por
ausência dos pressupostos de existência – é vício que, por sua
gravidade, pode ser reconhecido mesmo após o trânsito em julgado,
mediante simples ação declaratória de inexistência de relação
jurídica (o processo), não sujeita a prazo prescricional ou
decadencial e fora das hipóteses taxativas do art. 485 do CPC (ação
rescisória). A chamada querela nullitatis insanabilis é de
competência do juízo monocrático, pois não se pretende a rescisão
da coisa julgada, mas apenas o reconhecimento de que a relação
processual e a sentença jamais existiram. 5.3. A doutrina e a
jurisprudência são unânimes em afirmar que a ausência de citação
ou a citação inválida configuram nulidade absoluta insanável por
ausência de pressuposto de existência da relação processual, o
que possibilita a declaração de sua inexistência por meio da
ação querela nullitatis.
5.4. Na hipótese,
pelo que alegam o INCRA e o Ministério Público Federal, as terras
foram alienadas a particulares pelo Estado do Mato Grosso que não
detinha o respectivo domínio, já que se trata de área supostamente
situada na faixa de fronteira, bem pertencente à União desde a
Carta Constitucional republicana de 1891. Ocorre que a ação de
desapropriação foi proposta contra os particulares que receberam do
Estado do Mato Grosso terras que não lhe pertenciam, jamais tendo
participado do feito o legítimo titular do domínio – a União.
5.5.
A União não participou do feito expropriatório e, ainda que
tivesse participado, a simples alegação de que a área expropriada
lhe pertence gera dúvida razoável quanto a uma das condições da
ação, especificamente o interesse processual, pois, provado o
domínio federal, desaparece a utilidade do processo, já que
impossível desapropriar o que é própio.
5.6. A
pretensão querela nullitatis pode ser exercida e proclamada em
qualquer tipo de processo e procedimento de cunho declaratório. A
ação civil pública, por força do que dispõe o art. 25, IV, “b”,
da Lei n.º 8.625/93 (Lei Orgânica do Ministério Público), pode
ser utilizada como instrumento para a anulação ou declaração de
nulidade de ato lesivo ao patrimônio público.
5.7. A
ação civil pública surge, assim, como instrumento processual
adequado à declaração de nulidade da sentença, por falta de
constituição válida e regular da relação processual.
5.8.
A demanda de que ora se cuida, embora formulada com a roupagem de
ação civil pública, veicula pretensão querela nullitatis, vale
dizer, objetiva a declaração de nulidade da relação processual
supostamente transitada em julgado por ausência de citação da
União ou, mesmo, por inexistência da própria base fática que
justificaria a ação desapropriatória, já que a terra
desapropriada, segundo alega o autor, já pertencia ao Poder Público
Federal.
6. Do conteúdo da ação de desapropriação e
da ausência de trânsito em julgado quanto às questões relativas
ao domínio das terras desapropriadas.
6.1. A ação de
desapropriação não transitou em julgado quanto à questão do
domínio das terras expropriadas – até porque jamais foi discutida
nos autos do processo -, mas tão somente quanto ao valor da
indenização paga. Não houve, portanto, trânsito em julgado da
questão tratada na presente ação civil pública. Apenas os efeitos
desta, se julgados procedentes os pedidos, poderão, por via
indireta, afetar o comando indenizatório contido na sentença da
ação expropriatória já transitada em julgado.
6.2. A
inexistência de coisa julgada material quanto à discussão sobre o
domínio das terras desapropriadas afasta o fundamento de que se
valeu o acórdão recorrido para extinguir o processo sem resolução
de mérito por inadequação da via eleita. Com efeito, a ação
civil pública é o instrumento processual adequado para se obter a
declaração de nulidade de ato, ainda que judicial, lesivo ao
patrimônio público, sobretudo quando consagra indenização
milionária a ser suportada por quem já era titular do domínio da
área desapropriada.
7. Da ausência de coisa julgada
quando a sentença ofende abertamente o princípio constitucional da
“justa indenização” – A Teoria da Coisa Julgada
Inconstitucional.
7.1. O princípio da “justa
indenização” serve de garantia não apenas ao particular – que
somente será desapossado de seus bens mediante prévia e justa
indenização, capaz de recompor adequadamente o acervo patrimonial
expropriado -, mas também ao próprio Estado, que poderá invocá-lo
sempre que necessário para evitar indenizações excessivas e
descompassadas com a realidade.
7.2. Esta Corte, em
diversas oportunidades, assentou que não há coisa julgada quando a
sentença contraria abertamente o princípio constitucional da “justa
indenização” ou decide em evidente descompasso com dados
fáticos da causa (“Teoria da Coisa Julgada
Inconstitucional”).
7.3. Se a orientação
sedimentada nesta Corte é de afastar a coisa julgada quando a
sentença fixa indenização em desconformidade com a base fática
dos autos ou quando há desrespeito explícito ao princípio
constitucional da “justa indenização”, com muito mais
razão deve ser “flexibilizada” a regra, quando condenação
milionária é imposta à União pela expropriação de terras já
pertencentes ao seu domínio indisponível, como parece ser o caso
dos autos.
8. A Primeira Seção, por ambas as Turmas,
reconhece na ação civil pública o meio processual adequado para se
formular pretensão declaratória de nulidade de ato judicial lesivo
ao patrimônio público (querela nullitatis). Precedentes.
9.
O provimento à tese recursal não implica julgamento sobre o mérito
da causa, mas apenas o reconhecimento de que a ação civil pública
é o instrumento processual adequado ao que foi postulado na demanda
em razão de todo o substrato fático narrado na inicial.
Assim,
ultrapassada a preliminar de inadequação da via, caberá à Corte
regional, com total liberdade, examinar o recurso de apelação
interposto pelos ora recorridos.
10. Recursos especiais
providos. (REsp n. 1.015.133/MT, relatora Ministra Eliana Calmon,
relator para acórdão Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado
em 2/3/2010, DJe de 23/4/2010.) PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL.
REINTEGRAÇÃO DE POSSE. QUERELA NULLITATIS. AVENTADA AUSÊNCIA DE
EFETIVA CITAÇÃO DOS AUTORES. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC
CONFIGURADA.
1. A ação de querela nullitatis é remédio
vocacionado ao combate de sentença contaminada pelos vícios mais
graves dos erros de atividade (errores in procedendo), nominados de
vícios transrescisórios, que tornam a sentença inexistente, não
se sanando com o transcurso do tempo.
2. Os embargos de
declaração são cabíveis quando houver, na sentença ou no
acórdão, obscuridade, contradição, omissão ou erro material,
consoante dispõe o artigo 535, incisos I e II, do Código de
Processo Civil.
3. A violação ao art. 535 do Código de
Processo Civil configurou-se no caso dos autos, uma vez que, a
despeito da oposição de embargos de declaração – nos quais os
recorrentes apontam a existência de omissão, mormente no tocante à
falta de efetiva citação dos demandados no processo de reintegração
de posse -, o Tribunal não se manifestou de forma satisfatória
sobre o alegado, notadamente pelo fato de ter afirmado que essa
matéria já fora analisada em outros julgados, o que não
ocorreu.
4. O enfrentamento da questão ventilada nos
embargos de declaração é absolutamente insuperável e não pode
ser engendrado pela primeira vez nesta Corte, principalmente pelo
óbice da Súmula 7 do STJ.
5. Recurso especial
provido.
(REsp n. 1.201.666/TO, relator Ministro Luis
Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/6/2014, DJe de
4/8/2014.)
AÇÃO QUERELLA NULITATIS.
PREVIDÊNCIA PRIVADA. DECISÃO EXTRA PETITA. CABIMENTO. VÍCIO
TRANSRESCISÓRIO. NULIDADE. NOVO JULGAMENTO. ACOLHIMENTO DA
PRETENSÃO. TUTELA PROVISÓRIA. – Trata-se de querela nullitatis
ajuizada pela Fundação Banrisul de Seguridade Social com o escopo
de anular o acórdão proferido na apelação nº 70011680204, pelo
3º Grupo Cível, já com trânsito em julgado, sob o argumento de
que não observados os limites do pedido inicial, mediante violação
dos arts. 141 e 492 do CPC, sendo a decisão extra petita. Cabimento:
a querela nullitatis é demanda declaratória de inexistência do
processo, por isso cabível quando não preenchidos os seus
pressupostos de existência, o que impede a formação da coisa
julgada material. As decisões extra petitas são existentes, porém
nulas pois eivadas de nulidades sanáveis, mas que, entretanto, são
ineficazes e não formam coisa julgada. – Caso em que houve inclusão
de verbas não devidas e que não foram objeto da ação de
conhecimento diretamente no cumprimento de sentença, o que torna a
decisão extra petita e, portanto, passível de querella nulitatis. O
pedido inicial não envolvia aquilo que foi postulado em cumprimento
de sentença e assim mantido, configura violação ao princípio da
congruência ou correlação (arts. 141 e 492 do CPC), pois resultou
na concessão de verbas diversas das postuladas. – Pedido acolhido
para anular o acórdão proferido na apelação nº 70011680204, uma
vez que não há observância dos limites da lide. AÇÃO PROCEDENTE.
UNÂNIME.(Tutela Cautelar Antecedente, Nº 52441502120228217000,
Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Gelson
Rolim Stocker, Julgado em: 28-09-2023)